Uma ave encontrada no litoral fluminense aproximou cientistas de distintas gerações e pode ter abalado o que se conhecia sobre a longevidade da espécie. O achado também demonstrou a importância do anilhamento de animais de vida livre.
O poeta e compositor Vinícius de Moraes disse que a “vida é a arte dos encontros”. Na prática, certos encontros podem ser verdadeiras obras primas. Um deles ocorreu no salgado das águas de Búzios, a 180 km da capital Rio de Janeiro, numa trama que venceu décadas e distâncias.
Especializado em herpetologia na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), o biólogo Gaspar José Gomes Neto (25) queria ser biólogo “desde moleque”.
“Primeiro, quis ser paleontólogo. Aprendi a escrever copiando nomes de dinossauros de revistas”, detalhou o também consultor ambiental e resgatista de animais silvestres.
Já crescido, as práticas do pai e o gosto pela vida ao ar livre o fizeram um inveterado pescador. Todavia, ao invés dos petrechos usuais, adentra o mar num caiaque a pedal. Isso deixa as mãos livres para manejar varas e leme.
“Meu pai foi o primeiro pescador da família. Ele me levava. A pesca foi para mim também um jeito de ver os bichos mais de perto”, contou.
Contudo, o foco em anfíbios e répteis não apagou sua paixão pelas aves, declarada numa tatuagem de atobá. A marca, de agosto passado, igualmente agradece à espécie por apontar cardumes nas pescarias. “O atobá é meu bicho espiritual”, disse Gomes Neto.

Nos últimos dias do ano passado, ele topou justamente com um espécime da ave que carrega no corpo, flutuando calma no verde-azulado do mar. Até desviou do animal, mas ele acabou enroscado na linha e prontamente subiu no caiaque.
“Vi que tinha uma anilha quando o imobilizei para desatá-lo. Depois, o soltei e ele continuou boiando”, descreveu. “Não parecia doente, tentou me bicar algumas vezes e as penas estavam em bom estado”, avaliou Gomes Neto. Tudo foi filmado pela câmera instalada no caiaque.
No dia seguinte, os dados da anilha foram enviados ao Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Aves Silvestres (Cemave) e, passados cerca de 2 meses, o pesquisador recebeu um certificado com detalhes do anilhamento.
“Pouco depois, começaram a chegar muitos contatos por e-mail, telefone e redes sociais, perguntando onde a ave estava, se estava bem, se havia fotos e assim por diante”, relatou o biólogo.
O alvoroço tinha suas razões, pois o encontro pode ter sido revelador sobre a longevidade dos atobás. As informações mostravam que a anilha era de 1984, ou seja, a ave tinha pelo menos 40 anos de vida livre. Bem mais que a média de 25 anos estimada para a espécie.
Além disso, a marcação aconteceu no hoje Parque Nacional das Ilhas dos Currais, a cerca de mil quilômetros de distância de onde a ave foi encontrada, em Búzios (RJ), e sob a batuta do agrônomo e pioneiro ornitólogo Pedro Scherer Neto (76).
“Foi uma coisa espetacular, totalmente inesperada”, comemorou o mestre em Zoologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). “É um recorde mundial de longevidade para a espécie. Meu trabalho fechou com chave de ouro”, relatou a ((o))eco.
O achado da ave quarentona também aproximou Scherer e Gaspar Gomes, que se reuniram na mesma área do histórico anilhamento. A marca ajudou num estudo sobre populações e reprodução de aves marinhas que envolveu quase 3 mil atobás e fragatas (Fregata magnificens), de 1983 a 1994.
“Isso permitiu comparar a situação e os comportamentos de aves no Paraná, em Santa Catarina e no Rio de Janeiro”, detalhou Scherer Neto. “O anilhamento trouxe dados importantíssimos sobre o deslocamento das espécies, para onde há alimento e outras condições favoráveis”, explicou.

Ferrenho cientista
Ao longo das décadas, as pesquisas conduzidas por Scherer Neto reforçaram a criação do Parque Nacional das Ilhas dos Currais, em 2013, quase três décadas depois do anilhamento do atobá localizado em águas fluminenses, ano passado.
Segundo ele, proteger legalmente a região foi crucial para conter a pesca desregrada, o roubo de ovos das espécies que lá procriam e barcos soltando fogos ou buzinando para conferir e fotografar as revoadas de aves assustadas pela zoeira.
“Os animais eram ameaçados por vandalismo e outras atitudes não compatíveis com a necessária conservação da natureza”, resumiu o cientista.
Pela quantidade e variedade de espécies que lá moram, se reproduzem ou descansam em jornadas migratórias, Currais foi reconhecido, pela ong BirdLife International, como uma das áreas globais mais valiosas para conservar aves.
Incansável, além de deixar sua marca na conservação de aves marinhas, Scherer Neto ajudou igualmente a formar inúmeros outros pesquisadores. Um deles é Raphael Sobânia (46), que aos 14 anos se aproximou do pioneiro estudioso das aves.
“Estudava e gostava desses animais desde pequeno. Daí fui até o Pedro perguntar como me tornar um ornitólogo. Ele viu meu interesse e me aceitou como estagiário”, contou o também fotógrafo e guia de observação de aves em ambientes naturais.
Para Sobânia, o esforço de Scherer Neto posicionou as aves do Paraná entre as mais estudadas do país e o estado como um celeiro de especialistas nessas espécies. “Ele está na raiz disso tudo”, assegurou o biólogo, formado na Faculdades Integradas Espírita.
Segundo ele, as aves cumprem funções como dispersar de sementes a ovas de peixes, polinizar plantas, controlar populações de animais vivos e reciclar animais mortos. “Sua relação com outras espécies animais e vegetais mantém o equilíbrio dos ecossistemas”, destacou.

Cadastros alados
A ave com anilha encontrada em Búzios igualmente demonstrou a importância dessa prática científica para a conservação e monitoramento de impactos sobre espécies animais.
No Brasil, aves silvestres de vida livre, como o atobá quarentão, recebem anilhas desde os anos 1970. Elas já somam mais de 1 milhão. Suas letras e números apontam para sexo do animal, local e data das marcações.
“É como se fosse um CPF [Cadastro de Pessoa Física] de cada ave”, comparou Manuella Souza, coordenadora-substituta do Sistema Nacional de Anilhamento (SNA), vinculado ao ICMBio.
A prática é similar a de outros países e para outras espécies, como as tartarugas. Os dados brasileiros são compartilhados globalmente, ajudando até a traçar rotas de aves migrantes. As de criadouros têm outro sistema.
Apesar do número crescente, localizar uma dessas marcas não é corriqueiro. A taxa brasileira de recuperação é análoga à internacional, de aproximadamente 5%, ou menos de 50 mil anilhas.
Uma delas só foi encontrada por um detector de metais, enterrada no Rio Grande do Sul. Outras vêm à tona em encontros singulares, como o do cientista Gaspar Neto com o atobá-pardo, no litoral de Búzios (RJ).
“Essa é a parte mais legal. Anilhamos aves para que sejam encontradas e tragam essas informações sensacionais”, comemorou Manuella Souza (ICMBio).

Além de indicar por onde andam e tempo de vida, essas marcações ajudam a monitorar os impactos de obras, como de hidrelétricas e exploração de petróleo, bem como a proteger animais ameaçados de extinção.
Por isso, cada encontro com uma anilha é valioso e deve ser comunicado por meio do site, redes sociais ou email do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Aves Silvestres (Cemave).
“Quem informa e quem anilhou recebem certificados a cada recuperação, que pode ser feita por qualquer pessoa”, detalhou a coordenadora-substituta do Sistema Nacional de Anilhamento (SNA).
“É a ciência cidadã colaborando com o trabalho de pesquisadores”, acrescentou o ornitólogo Pedro Scherer Neto. A prática é uma parceria entre amadores e cientistas para coletar dados úteis a estudos formais.
A viagem de ((o))eco ao Paraná foi em parte apoiada pelo Programa de Recuperação da Biodiversidade Marinha (Rebimar), patrocinado pela Petrobras e realizado pela Associação Mar Brasil (AMB).
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